(retirado do site : www.omelete.com.br)
Por mais que a cachaça tenha se tornado um patrimônio nosso - alguns anos atrás os connoisseurs da bebida seriam tachados de pinguços - um documentário sobre ela ainda corre o risco de julgar quem bebe. Estrada Real da Cachaça tem o mérito de não incorrer nessa armadilha moral e, ao mesmo tempo, não ignora que a cachaça que exportamos caro é também a pinga matinal de muita gente.
Na verdade, o lado gourmet só aparece claramente no final, quando o filme termina seu percurso do interior ao litoral e chega a Paraty. Antes disso, o documentário faz todo o trajeto da antiga estrada dos tempos imperiais, que vai de Januária, no Norte das Minas Gerais, quase na Bahia, até o mar fluminense. A história da bebida se confunde com a formação e o desbravamento extrativista do Brasil.
A maneira encontrada pelo diretor Pedro Urano para impedir os julgamentos é aceitar o caráter sociocultural da pinga. A primeira garrafa que aparece no filme vai quase inteira na macumba preparada no meio do mato, e a viagem de sons sem sincronia e mudanças de cores que vigora até o final parece estar sob a influência desse primeiro despacho. Virão outras associações, inclusive cristã, no interessante paralelo da cobra mergulhada no jarro - símbolo embebido do pecado - com a cena do Cristo crucificado lavado com mé.
No geral há três relações com a bebida: a cachaça como facilitador da coletividade (festas de rua), como consolo (dos garimpeiros sem dinheiro) ou uma mistura dos dois (as lavadeiras que se consolam e se celebram na bebida).Estrada Real da Cachaça pode parecer um filme de câmera errática, aleatória, mas é bastante atencioso e sensível na hora de enquadrar todos os graus de labor envolvidos aqui, desde o corte da cana até as mãos das lavadeiras. É também um filme que não tem medo de se aproximar; em alguns close-ups quase dá pra sentir o bafo.
Tratar do assunto quase de um jeito fenomenológico - cada pessoa se relaciona com a realidade de uma forma diferente, e a existência do real está condicionada a essa percepção - ajuda a eliminar todos os pré-julgamentos relacionados à cachaça. Ela não só existe há séculos como seu sentido, na piração que o filme permite, é tão primordial quanto o sacro e o mundano, a vida e a morte.
Marcelo Hessel
Marcelo Hessel
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