sexta-feira, 15 de julho de 2011

Entrevista com Pedro Urano - Diretor do filme Estrada Real da Cachaça

Entrevista//Pedro Urano:
Você parece ter curtido muito fazer esse filme. Sempre gostou do tema?
Gosto de cachaça, não há como negar. E o filme também é a materialização desse gosto, mas tampouco se resume a isso. Não se trata de simples apologia, algo de que a cachaça não precisa. O filme é uma viagem no espaço e no tempo, um percurso, um caminho– uma estrada. A cachaça foi o meio que encontrei para acessar o imaginário do brasileiro. Um documentário através da cachaça.

Há cinco anos, você fez um curta sobre a Estrada Real. Foi um estudo para o longa. Há quanto tempo trabalha nesse projeto?
Depois de algum tempo pesquisando em casa, surgiu a necessidade de ir a campo. Tinha feito poucos filmes como diretor e precisava me convencer de que havia filme e de que era capaz de realizá-lo, para então seduzir ao projeto produtores, equipe e etc. A ideia era conhecer lugares e situações, tirar algumas fotos, fazer uma pesquisa de imagens e sons. Pouco antes de viajarmos, comprei uma câmera de vídeo e resolvi levá-la comigo: serviria com um bloco de notas audiovisual. Quando voltamos pra casa, surpreendi-me com o material que havíamos rodado. Havia assistido há pouco ao Notas para uma Oréstia Africana, do Pasolini, um filme belíssimo que trabalha com essa ideia de ‘estudo preparatório’ para a realização de um outro filme, e resolvi montar um curta, que se chamou Estudo Etílico para Construção de uma Estrada Real. Não é uma versão menor do Estrada Real da Cachaça. Não há nenhuma imagem ou som comum aos dois filmes.

Você poderia contar a história da cachaça de várias formas. O que te levou à Estrada Real?
A história da Estrada Real surgiu de uma curiosidade muito grande sobre como Minas Gerais foi capaz de assumir a posição de destaque que inegavelmente possui hoje quando o assunto é cachaça. Afinal, Minas não é uma região com tradição no cultivo da cana-de-açúcar como são Rio, Bahia e Pernambuco, por exemplo. Então, por que Minas? A resposta a esse enigma surgiu quando encontrei um caminho calçado de pedras no interior do estado. Aquela ‘estrada largada no meio do mato’, como alguém diz no filme, parecia sugerir que essa proeminência mineira se devia em grande parte à cultura bandeirante (e mais tarde tropeira) que descobriu, fundou e desenvolveu as chamadas Minas Gerais. Os bandeirantes e tropeiros, saídos de Paraty ou do Vale do Paraíba paulista sabiam que no sertão só se entra acompanhando da cachaça. E o filme, assim, se tornou também a história desse caminho, principal eixo de interiorização e desenvolvimento do país desde então.

Buscar a presença da cachaça na cultura brasileira a partir do recorte geográfico Minas-RJ não seria reducionista? O mapa também passa pelo nordeste...
Você tem razão. O mapa da produção e consumo da cachaça também passa pelo nordeste. E pelo norte, centro-oeste, sul... Cachaça se produz e consome em todo o território brasileiro. Quando comecei, pensava em viajar o país inteiro, mas logo percebi que essa vontade colocava em risco a efetiva conclusão do projeto. O Brasil é um país continental, e acabei por realizar esse recorte geográfico que é um pouco até onde conseguíamos chegar de carro. Com a descoberta das estradas reais a coisa encontrou uma direção e acabou se materializando assim: um filme sudestino. O norte e o sul de Minas, o quadrilátero ferrífero, o Vale do Paraíba paulista e o sul fluminense reuniam uma diversidade incrível de paisagens e situações mas, estranhamente, possuíam algo em comum.

O filme viaja de Minas ao RJ, no que parece ser a contramão do surgimento da estrada. Qual foi a intenção?
É a contramão do surgimento das estradas e da ocupação do território, mas é o sentido do escoamento da produção mineral, das riquezas, desde o século 18 até hoje. Além disso, a cachaça foi o primeiro produto industrial brasileiro a desbancar seus concorrentes no mercado internacional, tornando-se símbolo de um país que ainda não existia. Não é por acaso que tenha sido muito utilizada quando da elaboração de uma certa ideia de Brasil (por vezes extremamente estereotipada)pensada para seduzir estrangeiros. A cachaça sempre esteve presente na construção de uma auto-imagem ‘tipo exportação’ do país. Vi sentido no caminho apontar para o outro, para o oriente, o desconhecido, o mar. A colônia era toda voltada pra Europa, afinal. Mais do que isso, no entanto, percorrer o caminho nesse sentido permitiu que o filme materializasse uma busca pelas origens da cachaça, do país, do brasileiro. “A coisa começou em Paraty, então é lá que vamos terminar!”, pensei.

A fotografia (muitas paisagens e cores fortes) e as sequências de produção da cachaça, são plasticamente lindas. Fale sobre essa concepção, de como ela é útil ao filme.
Isso aí foi fruto da pesquisa de imagens de que falei há pouco. Desde o início, coloquei-me a questão de quais eram as imagens e sons do filme que sonhava construir. É uma questão que me acompanha. Estou sempre a fazê-la quando começo um projeto. Prefiro trabalhar com imagens e sons a trabalhar  simplesmente com um texto. Essa é a diferença do que fiz para uma reportagem, seja ela boa ou ruim. Claro que há falas no filme, mas essas falas não esgotam seu interesse no conteúdo do que está sendo dito. O que quero dizer é que durante toda conversa ou entrevista, havia uma preocupação constante com o tom de voz, o ritmo, enfim, com a materialidade sensorial de cada fala. Um ótimo exemplo disso é a sequência que, durante a montagem, chamávamos de tropeiro-fantasma (o filme tem muitos fantasmas). Acontece lá pelo meio do filme, quando começamos a falar sobre a atividade mineradora na atualidade. Ouvimos um discurso pausado, um tom de voz baixo, algo clandestino, vez por outra pontuado por explosões típicas da prospecção de minérios. Essa foi uma entrevista que fizemos no alto de uma montanha, logo após o pôr-do-sol. A serenidade do lugar e daquela hora do dia condicionaram o estado de espírito do entrevistado e isso me pareceu um contraponto interessante ao que estava sendo dito. Ou seja: há o discurso verbal, mas não é ele sozinho que estrutura a narrativa. Não é um filme puramente racional, ele mobiliza mais de um sentido. É um filme sensual, sensorial, endereçado ao corpo do espectador como um todo. Trata-se também de comunicar a experiência da viagem, as mudanças na paisagem, nos ambientes acústicos. O filme, que tem como patrono Exú, senhor dos caminhos e amante da branquinha, é também um filme sobre o movimento.
Trechos da entrevista feita por André Dib, do Diário de Pernambuco
www.pernambuco.com

Rótulo de cachaça - A série

Episódio 2